Autismo No Brasil e EUA

autismo no brasil

O Transtorno do Espectro Autista é uma condição tratada de maneira diferente no Brasil e nos Estados Unidos, a Educação Especial, Inclusão e tratamentos de saúde são diferentes entre esses dois países. Apesar de eu já ter lido muito a respeito, tinha interesse em ouvir e acompanhar famílias brasileiras que têm filhos com autismo e que vivem nos EUA, para ver, sentir, escutar mais sobre o tema e aprofundar a reflexão, pensando em que sentido podemos avançar.

Quando recebi o convite para realizar uma conferência na Universidade da Califórnia, no II International Conferences CBI, no dia 2 de agosto de 2019, tratei de entrar em contato com famílias com pessoas com autismo e agendar visitas e conversas para ter uma perspectiva mais ampla e sólida sobre o tema.

Gostaria aqui, portanto, de apresentar algumas diferenças importantes quando se diz respeito ao autismo no Brasil e EUA:

Gasto x investimento

No Brasil os direitos sociais são tratados como gastos, que o governo e convênios evitam ao máximo ter e quando têm, lutam insistentemente para cortar.

A pessoa com autismo é encarada nos EUA em sua potencialidade, de modo que há uma clara visão de que é preciso investir bem o dinheiro, isto é, de maneira eficaz. É preciso que a intervenção dê resultados e faça o indivíduo melhorar em sua qualidade de vida, do contrário, a empresa que realiza o serviço é retirada.

A ideia de progressão é bem estabelecida. Por exemplo, uma criança que não possui os pré-requisitos para estar em uma sala de aula regular vai para uma sala ou escola especial e ela é constantemente reavaliada e tão logo tenha tais requisitos, ela é inserida da educação regular. Isto é, todo processo é crivado por objetivos claros que fazem parte de um processo mais amplo de pleno desenvolvimento do indivíduo.

Educação Especial x Educação Regular

No Brasil circula uma ideologia pseudocientífica que afirma que todas as crianças com autismo devem ser matriculadas na escola regular e elas automaticamente começarão a aprender caso o professor tenha um bom coração (ou uma “atitude inclusionista”, como gostam de mistificar). Estes discursos não possuem qualquer base nos dados disponíveis nas pesquisas em todo o mundo e produzem o sistema brasileiro de “inclusão” (ou melhor, de matrícula na escola regular), em que as pessoas com autismo são matriculadas em salas regulares, independentemente de suas dificuldades e necessidades. As escolas especiais resistem apesar dos esforços governamentais para fechá-las.

A partir da lei 12.764/12 passou a ser direito o “Acompanhante especializado” nos casos de pessoas com autismo com “comprovada necessidade”, mas como a lei não definiu como se comprova tal necessidade ou a formação ou papel deste acompanhante, o direito é corroído e cumprido de mil diferentes formas a depender da prefeitura.

Nos EUA, como em qualquer outro lugar do mundo civilizado, a Educação Especial é preservada e valorizada. As crianças com autismo são avaliadas individualmente e é traçado um conjunto de objetivos e programas de ensino individuais. Se estes objetivos são melhor desenvolvidos em escolas especiais, lá elas são matriculadas, se o melhor lugar for um espaço com oportunidades de convívio coletivo com outros alunos com desenvolvimento típico, então podem ir a salas especiais em escolas regulares e se possuem todas as condições de acompanhamento em uma sala regular, é onde são matriculados.

O guia da matrícula é, portanto, as necessidades da criança e não uma ideologia prévia.

Como já dito, no entanto, isto não é definitivo, mas parte de um processo. Uma pessoa com dificuldades mais acentuadas pode começar em uma escola especial, ir para uma sala especial e posteriormente desenvolver mais habilidades e caminhar para a sala regular. A questão principal é que colocar alguém sem os pré-requisitos em uma sala regular é uma profunda exclusão e estigmatização e ocorre em prejuízo da criança (apesar do lindo discurso).

Ciência x achismo

Qual é o tratamento para autismo no Brasil? CAPS, 1h ou 2h semanais, normalmente em grupo, normalmente de orientação psicanalítica (a Psicanálise é uma pseudociência)

Qual a orientação teórica da inclusão? A “Inclusão Total”, uma Pseudociência que pressupõe que a “mudança atitudinal” faz com que a aprendizagem da criança com deficiência de concretize.

Quais são as evidências de que isso seja eficaz? Nenhuma.

Uma lei dos EUA, chamada Nenhuma criança deixada para trás, do começo dos anos 2000 estabeleceu que nenhuma intervenção em Educação Especial nos EUA pode ser realizada com práticas sem evidência científica, de modo que toda a inclusão escolar, salas especiais e escolas especializadas são baseadas na Análise do Comportamento Aplicada – ABA, que é a intervenção com evidência para autismo.

É proibido o gasto de dinheiro público em práticas que não se mostraram eficazes em pesquisa científica sólida, o que faz com que tudo seja baseado em práticas eficazes. O mesmo acontece na intervenção de saúde, para quem complementa a intervenção em casa, com o Seguro Saúde. As crianças recebem ABA, que é a base fundamental e mais TO, com Integração Sensorial e Fono.

Melhora ou não

No Brasil é quase um pecado “medir” a evolução do indivíduo, acusações como “positivista” e “quer reduzir o ser humano a um número” é uma constante quando cobramos o desenvolvimento de políticas de saúde e educação.

O mais próximo que temos disso são as notas escolares (em geral a coisa é tipo “dá 5 que ele é de inclusão” – independentemente do desempenho – para lembrar, não estou inventando, sou professor) e os “feedbacks” de porta de consultório, do tipo “hoje ele foi maravilhoso”, “Nossa, tá super bem”, “Hoje ele fez tudo, mãe”. Este sistema de não medir avanço é o segredo mais fundamental para manter coisas que não funcionam (e que se houvesse medição, seriam abandonadas).

Nos EUA, como já dito, as práticas devem ser aquelas com evidência e o que a ciência mostra é que é impossível um desenvolvimento a contento sem dados para a tomada de decisão, de modo que em toda intervenção baseada em ABA tudo é milimetricamente registrado e os dados compartilhados entre todos os profissionais que atendem a uma pessoa e sobretudo com seus pais.

O importante a se desenvolver neste ponto é o seguinte. O seguro saúde contrata empresas que implementam a intervenção ABA e avalia se a criança está melhorando. Se ela não estiver, a empresa é trocada. É verdade que a questão é que os seguros querem que a criança se desenvolva o máximo e o mais rapidamente possível, pois assim terão que dispender menos dinheiro com ela no futuro, mas o fato é que quem sai ganhando também são as pessoas com autismo e suas famílias, que sentem e veem o desenvolvimento real destas crianças.

Diferenças regionais

Neste ponto, Brasil e EUA vivem à mesma questão. Nosso evento ocorreu na cidade de San Diego, que fica no Condado de San Diego (algo tipo uma região metropolitana), onde a intervenção educacional tem uma qualidade excepcional. No entanto, os pais que participaram e que vieram de Los Angeles relataram algo muito diferente, com avaliação menos rigorosa e organização mais complicada. O mesmo acontece no Brasil, com os diferentes municípios implementando políticas muito diferentes para a inclusão e saúde pública.

Nem tudo são flores

No Brasil, com todos os problemas, todos os cidadãos têm direito à saúde. Para autismo não existe tratamento no país (o que não tem evidência não pode ser considerado tratamento), mas para muitas condições há sim, apesar da precariedade e espera.

Nos EUA não existe saúde pública, o que quer dizer que só tem acessos às intervenções na saúde quem possuir um seguro saúde. A grande sacada das famílias com autismo foi lutar e conquistar a intervenção na educação, que faz também mais sentido técnico e logístico.

 Para onde o Brasil pode caminhar?

Quando apontamos o sistema dos EUA como um modelo a ser seguido, é muito comum que as pessoas pensem algo do tipo “lá é primeiro mundo”, “não dá para comparar”, “O Brasil é um país pobre, não daria para fazer” e coisas assim.

Pois bem, é verdade que no Brasil os municípios são muito diferentes entre si. Então dou um exemplo, partindo de uma cidade que conheço e que tem recursos médios e a partir disso, propor um modelo de como poderíamos aproveitar ao máximo os recursos já disponíveis.

Cidade X tem Professoras de sala de recursos, uma equipe multidisciplinar pequena e quando se chega à conclusão de que uma criança com autismo necessita de acompanhante, um estagiário de pedagogia é contratado. Tem cidades com muito mais e outras com muito menos, seria necessária uma adaptação para cada contexto, mas falemos do exemplo.

Imaginemos que a equipe multidisciplinar, no começo ano, fizesse uma avaliação individualizada de cada estudante, utilizando um protocolo chamado VB-MAPP, ABLLS-R ou Portage (entre outros) e a partir dessa avaliação escreva o Plano de Ensino Individualizado – PEI, em parceria com a Professora de Sala de Recursos, com programas individualizados de ensino específicos para suas necessidades e com um sistema de registro minucioso.

A Professora de Sala de Recursos então treina o estagiário para: a) aplicar todos os programas de ensino diariamente; b) registrar e lançar os dados de aplicação.

As 2h de trabalho da Professora de Sala de Recursos seriam utilizadas assim: 1h de análise dos dados e supervisão com o estagiário – ver o que a criança avançou e talvez mudar programas, ver o que não avançou e corrigir o que há de errado; 1h de acompanhamento em sala de aula, vendo como o aplicador implementa os programas.

O ideal seria que se começasse na creche, que atende as crianças por 40h semanais (sim, as tão sonhadas 40h de ABA) chegamos imediatamente à carga horária ideal.

Quanto custaria isso? Exatamente nada. A equipe multidisciplinar, Professora de Sala de Recursos e estagiários já existem, os protocolos são gratuitos. Só o que é preciso é vontade política e compromisso com a ciência, coisas que estão em falta. Mas assim como ocorreu nos EUA, este sistema não caiu do céu, mas é fruto da luta organizada dos pais de crianças com autismo. A primeira tarefa, portanto, é construir o consenso na comunidade dos pais em torno da ciência, este texto é parte deste esforço!

Autor: Lucelmo Lacerda é Doutor em Educação pela PUC-SP, Pesquisador de Pós-Doutoramento na UFSCar, Psicopedagogo e autor do livro “Transtorno do Espectro Autista: uma brevíssima introdução”

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