Normalmente não compartilho experiências pessoais em textos ou as redes sociais. Embora não veja nenhum problema nas pessoas que utilizam sua experiência para contribuir com a informação coletiva sobre autismo, o que acho muito bom, quando feito de maneira ética, não é o caminho que eu tomo pois: a) falo muito em evidências científicas e pode haver a confusão entre o exemplo mostrado e a evidência (um caso não forma evidência de nada); b) na verdade, muito pouco de pessoal estão em minhas redes.
Mas neste caso, particularmente, optei por compartilhar uma experiência pessoal pois não há outra forma de bem expor o processo porque passamos e de alguma forma, eventualmente, permitir que outras pessoas tomem caminhos em relação ao que conto.
Fazer o exame genético?
Desde há muito eu gostaria de fazer o exame genético com meu filho, os motivos são os que seguem:
- Para poder entrar em estudos que têm a variante genética como critério de inclusão (isto ocorre muito porque estudos com pessoas com autismo com diversas causas tende a ficar com variáveis menos controladas e perdem força);
- Eventual impacto clínico direto (em alguns casos o exame oferece informação que pode ter efeito clínico imediato);
- Encontrar e participar de grupo de pais com a condição específica para mais informações e mobilização.
Mas havia alguns problemas para concretizar o tal exame: a) difícil conseguir um bom médico para fundamentar o pedido para que eu pudesse ganhar judicialmente do convênio e ainda assim a cobertura normalmente não atinge os exames mais complexos – Exoma e Genoma; b) mesmo se eu tivesse um pedido médico, haveria enorme burocracia, complicação e custos financeiros para judicializar a questão e ainda com boa chance de perder; c) na hipótese de pagamento, ainda não é muito acessível financeiramente; d) o impacto clínico do exame genético normalmente é indireto e de longo prazo, de modo que a prioridade era na organização da intervenção adequada.
Então meu primeiro passo foi investir na intervenção ABA, quando ela estava organizada e adequada (embora sempre haja problemas eventuais) e assim que o preço do exame genético caiu e surgiram formas de parcelamento, entendi que valia a pena fazer um esforço e realizar o exame. A questão que surgiu, então, era, que exame fazer? Eu apresento aqui os principais:
CGH-Array: faz a avaliação dos cromossomos, examina se há deleções (quando se apaga uma informação genética) ou duplicações cromossômicas. É o mais barato dos exames, mas não substitui os demais. Faixa de preço: R$4.000
Exoma: analisa uma região do genoma com as informações de produção de proteínas e outras moléculas responsáveis pelas funções de nosso corpo. Na maior parte das vezes os problemas genéticos implicados no autismo aparecem neste exame. Ele é parte do genoma, mas não substitui o CGH-Array. Faixa de preço: R$7.400
Genoma: é o exame que analisa todos os genes. Ele inclui a análise dos Éxons e do restante do DNA (chamado de DNA lixo, mas que possui regiões regulatórias, intergênicas e outras informações importantes) em que são descritas alterações em qualquer gene, além do processamento de alguns medicamentos pelo organismo da pessoa testada. No entanto, é o exame mais caro. Faixa de preço: R$18.500
As pessoas com autismo dificilmente têm alterações cromossômicas e quando elas existem normalmente há indicativos clínicos, que não estavam presentes em meu filho, assim, o CGH-Array não era meu alvo.
Se eu fizesse o Exoma e não houvesse nenhuma alteração, sabia que ficaria me coçando para saber se o Genoma completo me daria esta informação, além disso, se depois quisesse fazer o genoma, não poderia simplesmente pagar a diferença, teria que financiar o exame inteiro. Pesando tudo isso e com a possibilidade de parcelamento, fiz o genoma.
Execução: Quando decidimos fazer o exame, contatamos a empresa Tismoo, especializada no tema, e agendamos a consulta com a geneticista e coleta da amostra. É possível enviar a amostra de casa, mas optamos por não fazê-lo pelos seguintes motivos: a) meu filho gosta de viajar de carro, então isto não é muito problemático em uma distância média como de São Sebastião a São Paulo (sei para muitas pessoas é muito difícil); b) Precisávamos passar em um médico geneticista e eu sabia que a Dra. Iara, da própria Tismoo, era muito boa, conforme indicado por minha amiga Ana Paula Chacur; e c) tenho muito medo de contaminar a amostra (ou achar que contaminei) e perder a confiança no resultado.
Fomos à consulta, em que a médica conheceu bem o meu filho, fez inúmeras perguntas, enfim, realizou uma avaliação clínica que guia a leitura da informação genética (ela é Geneticista e também Neuropediatra).
Resultados: Primeiro preciso explicar uma coisa, o Transtorno do Espectro Autista não é uma doença, como muitos dizem. No entanto, esta informação aparece de um modo normalmente equivocado, em um sentido que indica que, se não é doença, então é uma coisa boa. Na verdade, a questão é distinta, o que ocorre é que o TEA é definido como um conjunto de sintomas que podem ser causados por diversas etiologias (causas) e estas é que são as doenças. Assim, não se trata de dizer que o autismo não é uma doença porque é bom, mas porque, nas palavras do grande pesquisador Prof. Dr. Francisco Assumpção Jr. e Profa. Dra. Evelyn Kuczynski “o TEA é um conjunto de doenças” (2018, p. 31). Ou seja, o TEA é definido como o prejuízo na Comunicação Social e nos comportamentos, isto é, a descrição do transtorno é sintomática, mas estes mesmos prejuízos podem ser decorrentes de diversas diferentes doenças (causas).
Bom, dito isto, em um mesmo gene pode haver diversas alterações que podem causar autismo e existem mais de mil genes correlacionados com o TEA. Mas “correlacionado” é diferente de “causa”, a correlação é a presença destas alterações em pessoas com autismo, mas daí a dizer que são estas alterações que estão causando o TEA é um caminho longo que demanda muita pesquisa.
O site Sfari, que compila os achados genéticos relacionados ao autismo estabelece graus de correlação entre o gene e a condição do autismo. O grau 1 é aquele em que temos certeza que problemas em determinado gene causa autismo, por exemplo, MECP2 ou SHANK3. Mas quando os problemas aparecem no MECP2, meninos não sobrevivem e meninas apresentam uma série de características como, por exemplo, o autismo. Estas características clínicas foram descritas e nomeadas como Sindrome de Rett, enquanto aqueles que apresentam problemas no SHANK3 participam do grupo que possui a Síndrome de Phelan-McDermid.
Quando o gene está no nível 2 do Sfari é porque há forte correlação com o autismo, mas não uma demonstração capaz de garantir que aquela alteração produz o autismo. O site classifica os genes até o nível 6, portanto o nível 1 apresenta os genes que garantidamente causam o autismo e descemos a escala progressivamente, até o último nível, em que há apenas alguma pouca informação de correlação entre certo gene e a condição do TEA.
Dito tudo isso, o resultado do exame (chegou 4 meses depois de realizado – o tempo padrão) apresentou problema em 2 genes nível 3 no Sfari, ANK3 e HECTD4, um gene nível 4, chamado NF1 e um gene nível 1, de nome SETD5, um gene cujo problema causa prejuízos ainda não descritos de forma sistemática, de modo que não é uma síndrome com um nome, mas que, sendo causador do autismo e já tendo sido apontado um corpo de características por um breve literatura científica, pode ser chamado de sindrômico. Ou seja, a informação que tivemos é que ele possui o autismo sindrômico em uma síndrome ainda não descrita e nomeada e três outras alterações que podem, ou não, cumular outros prejuízos.
Contato e possibilidades
O SETD5 é um gene epigenético que prejudica enormemente aqueles que possuem uma versão sua com algum problema, isto é uma coisa muito ruim, claro. Mas eu sabia que este também era o gene pesquisado pelo Dr. Alysson Muotri (PS: é o gene causador do filho do pesquisador) então entrei em contato com ele, perguntando por alguma pesquisa específica sobre o gene.
O Alysson me informou que havia uma pesquisa em curso com a Dra. Isabella Fernandes (também brasileira) e ofereceu a entrada de meu filho. Já estava marcada minha ida à Califórnia para uma palestra no II International Conferences of CBI of Miami em cerca de um mês, o que não dava tempo de tirar o passaporte do meu filho e leva-lo comigo para a retirada da amostra.
Novamente entramos em contato e, com o apoio técnico da Dra. Graciela Pignatari, conseguimos retirar uma amostra de pele, conservar, com gelo, e chegar até o laboratório. Quando cheguei a San Diego, levei ao Muotri Lab e o entreguei (e conhecendo o laboratório e todos os processos de produção e exame dos minicérebros).
Pesquisa em curso: como é e resultados esperados
Da maneira mais resumida possível, tento explicar a pesquisa. Nós temos diversos tipos de células em nosso corpo, como células de pele, de osso, de rim ou de fígado. Quando pegamos a célula de pele, ela é muito diferente daquelas de cérebro, mas existe um processo que envolve colocar a célula de pele em um ambiente líquido específico e lançar nela um vírus, que faz com que aquelas células de pele voltem a ser células pluripotentes e se tornem todas as células do corpo, mas somente o que interessa no laboratório são os neurônios, eles são selecionados e, a partir da pele, pode-se fazer então um conjunto de neurônios, que vão crescendo e se tornando um organoide, que chamamos de minicérebro.
Quando uma pessoa faz um exame de imagem de seu próprio cérebro e pegamos seu minicérebro e fazemos o mesmo exame de imagem nele, verificamos que ele se comporta da mesma forma como o seu próprio órgão. As pessoas com autismo têm padrões alterados já nestes minicérebros, que podem ser, por exemplo, uma inflamação nos astrócitos e alterações nos padrões de ondas de cálcio.
Pois bem, no começo dos anos 2010, o Alysson Muotri, em laboratório, começou a testar várias drogas as pingando nos minicérebros das pessoas com Síndrome de Rett (à época, um tipo de autismo) e teve sucesso com algumas delas, que foram então aproveitadas por laboratórios farmacêuticos que estão terminando agora os primeiros testes clínicos (tudo indica que com sucesso).
O mesmo processo agora tem sido feito com o SETD5, em que estão sendo testadas 350 drogas, gerando enormes possibilidades para o desenvolvimento de fármacos que ajudem no funcionamento das funções cerebrais.
Minha expectativa é dupla:
- Que esta pesquisa aponte para drogas eficazes para melhorar o funcionamento de pessoas com erros no gene SETD5 (meu filho entre elas);
- Que estas drogas, ao atuar nas vias em que também atuam outros genes, possam melhorar a condição das pessoas com autismo para além especificamente do SETD5, mas sim também as que possuem condições genéticas distintas.
Aguardando agora ansioso pelos resultados.
Além disso, o Alysson Muotri me apresentou à comunidade internacional dos pais do SETD5, no Facebook, onde trocamos informações sobre nossos filhos.
Detalhe importante
Não era possível, no momento em que entreguei as amostras, saber se elas tinham ficado boas ou se os minicérebros iriam prosperar, mas mais recentemente recebi o retorno: ELES ESTÃO CRESCENDO, UHUUUUU, A ESPERANÇA ESTÁ ACESA!
Autor: Lucelmo Lacerda é Doutor em Educação pela PUC-SP, Pesquisador de Pós-Doutoramento na UFSCar, Psicopedagogo e autor do livro “Transtorno do Espectro Autista: uma brevíssima introdução”
Assumpção Jr., F. Kuczynski, E. (2018) Autismo: conceito e diagnóstico. In: Sella, A.C., Ribeiro, D.M. (Orgs) Análise do Comportamento Aplicada ao Transtorno do Espectro Autista. Curitiba: Appris